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Direitos Humanos

Só de pensar na viagem até Bras&iacu

Quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Última Modificação: 05/01/2017 11:19:10


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Só de pensar na viagem até Brasília, a agricultora e costureira Fátima Monteiro sentia frio na barriga um dia antes de embarcar para a 5ª edição da Marcha das Margaridas. “Estou muito ansiosa para chegar lá e ver aquele pessoal, aquela multidão falando uma coisa só, vai ser muito bom”, disse enquanto tramava um cachecol de tiras de malha lilás, fazendo das mãos um tear. “É para o frio do ar-condicionado”, explicou.

No domingo (9) cedo, ela e mais 37 mulheres do Polo da Borborema – articulação de entidades sindicais que atua em 14 municípios da região do Brejo Paraibano – embarcaram em um dos quatro ônibus que saíram em caravana de Campina Grande até Brasília. Fátima deixou a casa e a pequena roça à beira de uma rodovia no município de Queimadas para, durante uma semana, acompanhar camponesas em busca de direitos.

>> Veja o especial completo: O Caminho das Margaridas

A caravana saiu de Campina Grande às 10h15, com mais de 2,1 mil quilômetros (km) pela frente até Brasília, em uma viagem que só terminou 44 horas depois. Na despedida, abraços nas companheiras que ficaram na Paraíba e muitos votos de boa sorte e coragem para as margaridas em marcha.

Na bagagem das paraibanas, a camiseta lilás, o chapéu de palha enfeitado com flores que já virou símbolo da mobilização, e o orgulho de serem conterrâneas da líder sindical Margarida Maria Alves, que inspirou a marcha. “A gente vai com uma força muito grande da Margarida daqui. A gente fica feliz porque sabe que está levando uma caravana de mulheres do estado onde começou essa luta. Margarida está viva dentro de nós, porque cada uma tem essa inspiração dela, de força, de luta e de coragem”, disse a líder sindical e integrante da coordenação executiva do polo, Maria do Céu Silva Batista de Santana.

Casos de violência

Antes de se juntar à marcha e ao movimento sindical, Fátima foi vítima de violência doméstica e aguentou por muitos anos o marido agressor. Por esse motivo, durante a caminhada em Brasília, ela também vai comemorar os nove anos da Lei Maria da Penha, completados no início de agosto.

“Eu era muito sofrida em casa e aí comecei a participar do sindicato. Quando comecei, sempre que ia às reuniões meu ex-companheiro me agredia, depois fui perdendo o medo devagarzinho”, contou.

“Cheguei um dia em casa e estava aquela zoada, botei a comida e ele quebrou o prato, uma cadeira passou pela janela e eu disse 'seja o que Deus quiser, se Ele quiser, que esse homem saia da minha vida'. Estava aperreada, chorando, angustiada, aí Deus tirou ele da minha vida, sem ser por morte, e agora vivo bem, criei meus quatro filhos”, lembrou.

No ônibus, Fátima fez questão de sentar na primeira fila, perto de antigas e novas companheiras de luta e de estrada. No caminho, frutas, água fresca, suco e sanduíches servidos por Maria do Céu, apelidada de “aerocéu”, por causa do carinhoso serviço de bordo. “Muito melhor que comida de avião”, brincou uma das margaridas.

A primeira parada da caravana, em Sumé, 120 km depois de Campina Grande, foi apenas uma pausa para esticar as pernas. Na espera para usar o banheiro, uma cena que se repetiria por todo o longo trajeto: mulheres nas filas do masculino e feminino, sem espaço para a concorrência.

Na TV do ônibus, vídeos sobre agroecologia e autonomia das mulheres filmados no Polo da Borborema para inspirar a viagem e a marcha. Nos intervalos, conversas entre as fileiras, risadas às vezes tímidas, às vezes gargalhadas, e muita troca de experiência entre as margaridas.

“Casamento é um grande formigueiro, não quero entrar em outro nunca mais”, comparou a agricultora Maria José Barbosa. “Graças a Deus, meu marido está mudando porque eu também mudei. Antes, não me deixava usar nem batom, hoje sou passarinho que voa livre”, emendou a companheira de viagem Josélia de Andrade Pereira, a mais vaidosa da turma, maquiagem sempre a postos.

Entre uma fofoca e outra, surgiam as histórias que levaram cada uma das margaridas a estar ali. Os olhos vivos e o sorriso fácil da agricultora Ligória Felipe não davam sinais do sacrifício que ela enfrentou até embarcar.

“Me programei durante 15 dias e, na véspera, faltou dinheiro, fiquei lisa porque usei o dinheiro para comprar fralda e remédio para minha neta”, contou. “O sindicato disse que não podia dar mais dinheiro, mas depois decidiu que sim. Na véspera, disse; 'vou fazer um bolo para a gente tomar café da manhã na estrada'. Quebrei as espigas de milho, preparei tudo, aí meu marido chegou embriagado e quebrou todas as lâmpadas da casa. A casa ficou no escuro, não tive como fazer [o bolo]. Eu disse a ele: 'você pode quebrar até a casa, mas eu vou'. Eu tinha que fazer, porque se eu não fizesse isso, da próxima vez, ele ia fazer coisa pior, eu tinha que vir”, completou.

A violência doméstica sentida na pele por Fátima e Ligória também preocupa as margaridas mais jovens da caravana, como a agricultora e estudante Adailma Pereira, 25 anos, que vai marchar para que as mulheres possam escolher seu lugar no mundo. “Mulher tem seu lugar e não precisa ser só do lado do marido e da casa. Lugar de uma mulher pode ser ao lado de um homem, mas como sua parceira, na sociedade, como uma pessoa, um ser humano, no lugar em que ela merece estar.”

Viagem

No fim do primeiro dia de viagem, a segunda pausa: Salgueiro, em Pernambuco. Nesse ponto, a caravana de Campina de Grande encontrou ônibus procedentes de outros estados do Nordeste para seguir viagem e atravessar em grupo as rodovias da região, conhecidas pelos altos índices de assalto. Na parada, mais filas e R$ 4 para usar o chuveiro. “Antes, o banho aqui era de graça, estão se aproveitando das margaridas”, reclamou uma das viajantes. Banho tomado, jantar e o pneu de um dos ônibus trocado, pé na estrada noite adentro.

O desconforto de dormir em uma cadeira, sem esticar pernas e coluna, era motivo de reclamação de vez em quando, quebrando o silêncio da noite escura do sertão pernambucano. Na segunda-feira (10), o café da manhã já foi na Bahia, no município de Itaberaba, na região da Chapada Diamantina. Mais uma vez, pouco banheiro para muitas mulheres. Para o desjejum, café com leite e pão trazido da Paraíba.

De volta à estrada, hora de ensaiar a canção mais famosa da marcha, o Canto das Margaridas: “Olha, Brasília está florida/ Estão chegando as decididas/ Olha, Brasília está florida/ É o querer, é o querer das Margaridas”. Microfone aberto, a cantoria seguiu com sucessos de Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, canções de romarias e de outras lutas. “Para mudar a sociedade do jeito que a gente quer/ Participando sem medo de ser mulher”, conhecido refrão de uma canção do compositor Zé Pinto para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Fonte: Agencia Brasil

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