Sexta-feira, 05 de dezembro de 2014
Última Modificação: 05/11/2018 13:33:01
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A preparação dos profissionais que lidam com vítimas de violência sexual, e um ambiente adequado para a abordagem evitam que o sofrimento seja agravado na repetição da violência
Depois de ouvir o depoimento de uma criança vítima de violência sexual em uma situação extremamente constrangedora, o então juiz da infância e da juventude José Antônio Daltoé Cezar prometeu que nunca mais faria as coisas daquele jeito. Inconformado, começou a procurar soluções. Pensou nas câmeras de segurança que estavam começando a ser usadas em locais públicos, comprou uma e contou com a ajuda de um promotor de Justiça, que comprou um gravador. Assim foi feita em 2003 a primeira tentativa de audiência com redução de danos do Brasil.
Uma década depois, o assunto é debatido por profissionais de diversas áreas que envolvem a infância, e recentemente a ONG Childhood Brasil publicou o guia Escuta de Crianças e Adolescente em Situação de Violência Sexual. Aos poucos, se procura modificar a abordagem que se tem com as vítimas durante os depoimentos e estabelecer protocolos ao atendê-las.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante, no artigo 100, inciso XII, a eles o direito “a serem ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente”. A mesma lei prevê, no artigo 18, que todos têm o dever de velar pela dignidade da criança e protegê-la de tratamento vexatório.
“Ainda não existe distinção entre o trabalho que é feito com o adulto e a criança”, observa Itamar Gonçalves, gerente de programas da Childhood Brasil. A mestre em psicologia forense Mayta Lobo relata que frequentemente são feitas perguntas desnecessárias e que falta conhecimento sobre como se aproximar e entender o universo de uma criança: “às vezes o juiz oferece uma bala no início da audiência e acha que está tudo resolvido”.
Abordagem
No depoimento com redução de danos, tanto a abordagem quanto o ambiente são importantes. Os especialistas no assunto explicam que é preciso respeitar os horários e a rotina que a criança tem, a conversa deve ter uma contextualização, permitir que a vítima fale sobre sua vida, seus hábitos e demonstre qual é a sua noção de espaço e tempo. As perguntas devem ser abertas, para não induzir a determinada resposta.
O ideal é que os profissionais que vão trabalhar com depoimento de crianças e adolescente entendam sobre as etapas de desenvolvimento, tenham um treinamento específico. Os entrevistados lamentam que em muitas graduações de direito as disciplinas de direitos da criança e do adolescente ainda não existam ou sejam somente optativas. Mas Daltoé, que hoje é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), reconhece que está havendo avanços, como capacitações sobre o tema feitas pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também tem procurado dar orientações sobre o tema.
A via crucis do depoimento
As salas especiais e o esforço por uma abordagem específica para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no âmbito do Judiciário são passos importantes na garantia da dignidade deles. No entanto, até que cheguem a depor no processo, essas pessoas passam por uma verdadeira via crucis, em que, na maioria dos casos, são submetidas a relembrar e relatar diversas vezes o que sofreram.
Se as evidências da violência forem percebidas no ambiente escolar, por exemplo, pode haver a comunicação com mais de um profissional, como professor, coordenador, orientador educacional. Dali, aciona-se o conselho tutelar, passa-se à delegacia... Enfim, até chegar ao Judiciário a criança já pode ter relatado mais de cinco vezes a violência que sofreu.
Itamar Gonçalves, gerente de programas da Childhood Brasil, diz que essa repetição do sofrimento “é extremamente revitimizadora” e pode levar à desistência. Ele conta que uma criança que estava na 7.ª entrevista pediu que tudo parasse: “Me deixem em paz, eu não quero mais falar disso. Eu menti”, disse ela na tentativa de não precisar passar por aquilo de novo.
Experiências de outros países servem de inspiração para o Brasil
Novidade por aqui, os depoimentos especiais para crianças existem há mais de 30 anos nos Estados Unidos. Além de ter tradição nessa técnica, o país tem a experiência de centros integrados para crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual, como o National Advocacy Center, citado no guia lançado pela Childhood no Brasil. O texto destaca também o Zebra e o Witness Centers, no Canadá.
O desembargador José Antônio Daltoé participou de uma pesquisa de campo com Childhood e esteve na Inglaterra, na Argentina e na Lituânia para observar como os métodos são aplicados nesses países. “As legislações processuais são diferentes, mas a técnica de entrevista é a mesma”, diz o magistrado.
Além de recursos tecnológicos, como câmeras e microfones que permitam a transmissão para a sala de audiência, o ambiente onde uma criança depõe precisa se diferenciar dos espaços tradicionais do Judiciário que os adultos frequentam, devem ser “salas projetadas de forma acolhedora e humana”, diz o gerente de programas da Childhood, Itamar Gonçalves. Ele explica que, quando a vítima se emociona durante o depoimento e precisa fazer uma pausa, o ideal é que tenha água e banheiro disponíveis, para que não precise sair da sala e depois a ambientação tenha de ser reiniciada.
Fonte: Gazeta