Segunda-feira, 11 de maio de 2015
Última Modificação: 05/11/2018 13:25:58
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Mulheres dão à luz. O sentido desse evento tão natural, no entanto, é construído de forma cultural, pela troca de conhecimentos, conceitos e papéis sociais. Hoje, o Brasil assiste à emergência de um movimento que se propõe a discutir as práticas do nascer. A certeza sobre a melhor forma de parir, contudo, está longe de ser universal.
“O parto tem se transformado numa experiência de empoderamento. Hoje é possível à mulher construir para si a imagem de um corpo potente, capaz de superar as visões patologizantes construídas durante séculos por uma medicina que viu o corpo feminino como frágil e incapaz de dar à luz por si”, avalia Heloísa Regina Souza, pesquisadora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
A crítica ao parto medicalizado resulta em uma campanha pelo parto normal, sem intervenções, seguido de críticas às mulheres cesariadas. “É importante destacar que a mulher não tem que parir naturalmente. Ela pode, mas não tem quê. A problematização da cesariana não é regra. Muitas mulheres não sofrem posteriormente por essa experiência. Depende de como cada uma produz significados sobre o processo que viveu”, complementa Heloísa.
A psicóloga e doula Katya Montesano Bleninger tem outra opinião. Para ela, o parto é determinante na relação que a mãe estabelece com o filho. “Não dá mais para dizer que tanto faz a guia de parto, que o importante é que nasceu bem e saudável. Para a mãe, parir é um ritual importante de passagem, é um marco da vida sexual da mulher”, defende (confira depoimentos nesta página).
Até o século 17, o parto era um evento domiciliar, familiar e fisiológico. A assistência ao parto existe há séculos e teve início quando as mulheres passaram a ajudar umas às outras e a acumular conhecimento sobre o processo do nascimento. O homem não era excluído, mas sua presença era incomum.
O cenário começa a mudar com a ascensão da medicina como ciência e com o entendimento do médico como autoridade. Como o acesso à ciência era privilégio masculino, as mulheres passam a buscar aconselhamento com médicos e não mais com mulheres. O século 19 é marcado por transformações profundas, como a urbanização, industrialização e higienização. Inicia-se, então, o processo de hospitalização da saúde, o que inclui também o nascer. O parto sai do foro íntimo e privado e passa à esfera pública e hospitalar.
A patologização e a intervenção médica no parto estão relacionadas com a emergência da ginecologia e da obstetrícia como ciências no século 19. De acordo com Heloísa, a medicina voltada para a mulher construiu o entendimento de um corpo feminino fragilizado e destinado exclusivamente à maternidade e à esfera doméstica.
“A ginecologia e a obstetrícia, quando surgiram, exerceram um papel conservador, de tentar fazer a mulher retornar para o papel materno. Sair desse papel era visto como um comportamento patológico. O corpo feminino, compreendido como propenso a desordens variadas, reforçou a necessidade de medicalização, em especial na gestação e no parto. A medicina aderiu a um discurso científico justamente quando a mulher passou a reivindicar outros lugares que não o doméstico”, explica.
O movimento em defesa da humanização do parto não é exatamente novo. Começou na década de 1980, encampado por profissionais de assistência ao parto. A mulher passa a participar mais ativamente da discussão a partir da década de 2000.
Hoje, testemunha-se a emergência de um ativismo que busca o protagonismo da mulher no momento do parto. A autonomia aconteceria através do conhecimento sobre o próprio corpo, a gestação e o mecanismo do parto. “Investe-se no compartilhamento de saberes. É um momento de produção de conhecimento com maior participação da mulher”, observa Heloísa.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou há quase 20 anos um documento no qual elenca boas práticas de assistência ao parto. Entre as práticas recomendadas estão desde a básica empatia por parte dos profissionais envolvidos no trabalho de parto até a garantia de liberdade de posição e movimento.
Na lista de práticas definidas como claramente prejudiciais ou ineficazes que devem ser eliminadas estão, entre outras, a lavagem intestinal, a raspagem de pelos, a administração de medicamentos de indução do parto ou sedação.
A pesquisa Nascer no Brasil, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra que na maioria dos partos brasileiros as mulheres são submetidas a boa parte das intervenções consideradas prejudiciais pela OMS. A episiotomia, por exemplo, é realizada em 53,5% dos casos; Kristeller, em 36,1%; e rompimento da bolsa em 39,1%.
Na avaliação do obstetra Carlos Miner Navarro, o Brasil não investiu em políticas públicas de saúde para que as práticas da OMS fossem implementadas. “Continuamos a fazer como no passado, ainda há muita resistência. O parto ainda é tratado como procedimento médico. Os médicos também são formados para atender de acordo com o modelo tradicional de assistência.”(CP)
A antropóloga Heloísa Regina Souza explica que o significado do parto não é universal, sendo conformado por uma série de variáveis. Na sociedade ocidental moderna, a gestação, o parto e o pós-parto são pensados como ritos de passagem femininos, como elementos de construção de um novo papel social da mulher, o de mãe. Mas há outros significados:
Para o grupo amazônico Caxinauá, gestar um filho equivale a um ato artístico. Tal qual um integrante da tribo produz uma tapeçaria, a mulher Caxinauá produz o filho no ventre.
Os Mundurucu acreditam que todas as ações dos pais durante a gestação exercem influência sobre o parto. Existe a ideia de “mãe do corpo”, uma força feminina que precisa ser cuidada e bem gerida na hora do parto.
Os índios Mashco-Piro, do Peru, entendem que parir é um ato de autonomia. A índia Piro vai para a floresta ter o filho sozinha. A aldeia aguarda com expectativa, mas não há preocupação ou medo. A tribo acredita que a mulher detenha o conhecimento necessário inscrito no corpo e na experiência. (CP)
Fonte: Gazeta