Segunda-feira, 11 de maio de 2015
Última Modificação: 05/11/2018 13:25:58
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A velha sentença “biografado bom é biografado morto” não faz sentido para as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, que esmiuçaram um personagem com mais de 500 anos de história – e ainda vivinho da Silva – para criar a obra Brasil: Uma Biografia. O livro não é, porém, uma biografia do país que reconstrói sua personalidade plural em uma trajetória ininterrupta de lutas e contradições.
Do “descobrimento” ao Brasil escravocrata; do ciclo do ouro aos reinados; da Era Vargas às manifestações que tomaram as ruas do país em 2013. De 1500 até agora, nenhum período escapa da história contada sob o ponto de vista da dupla, que, submetendo-se ao desafio da biografia, propôs um relato dos fatos por meio de um texto narrativo.
É um dos pontos fortes da obra. A escolha de uma forma mais descontraída de contar a história da História –ainda que obedeça a todos os padrões rigorosos de pesquisa e respeito aos fatos – foge do modelo tradicional dos livros escolares, com os quais muita gente se acomodou a conhecer a trajetória do país. Por isso, a obra flui, sem engasgos.
Lilia Schwarcz, uma das autoras, explica que a escolha por este tipo de texto, que mais se aproxima do relato, foi uma decisão que a permitiu ampliar as próprias vozes dos acontecimentos, pois traz para o “palco” personagens tão importantes quanto os velhos conhecidos.
“Como a obra nasceu para ser uma biografia, trouxemos personagens muito famosos, mas também os anônimos, para dar sentido real a uma história do Brasil”, comenta. “Esse país tem seus grandes políticos, mas no livro também era preciso caber os intelectuais, os artistas, a sociedade que atuou e que atua”.
A linguagem narrativa e a ideia principal de fazer os leitores não apenas conhecerem, mas refletirem e até mesmo discutirem os fatos e suas consequências, abrem espaço para algo que vai mais além do simples encaixe das peças deste gigante quebra-cabeça.
Lilia M. Schwarcz e Heloisa Murgel Starling. Companhia das Letras.
792 pps. R$ 59,90. História.
Apoiada também em uma vasta iconografia, a interpretação é quase uma lógica no texto das autoras, que decifram efeitos, não se fecham somente em análises históricas, mas contestam doutrinas enraizadas que poucos argumentos têm para sobreviver.
Cordão de policiais militares durante manifestação em Brasília, em 1972.
Muitas destas considerações reforçam o novo entendimento de questões relacionadas, por exemplo, à “conquista” dos portugueses na América e das relações do sistema escravocrata que se estabeleceu no país ainda na segunda metade do século 16: a aproximação inicial dos portugueses e dos índios não foi pacífica; os indígenas foram sim escravizados por muito tempo; e não há como negar os resquícios da violência e da sociedade escravista até os dias hoje.
Tal como a realidade da história brasileira, o antagonismo estabelecido já na chegada dos portugueses à terra tupiniquim se faz presente em todos os 18 capítulos do livro, explícito – ou muitas vezes camuflado – nas relações de poder e submissão, tão fortemente marcadas na colonização, no processo de independência e no desenvolvimento do país como república e como território democrático.
Mas, se por um lado temos um livro “indignado”, por outro há relatos afetivos que revelam a identificação das autoras com o país. “Ao fazer do Brasil uma história, o livro olha para vários lados. Pelo menos procura olhar para vários lados”, ressalta Heloisa. A primeira biografia do Brasil não discute com os fatos, mas os questiona.
Fonte: gazeta