Terça-feira, 04 de agosto de 2015
Última Modificação: 05/11/2018 13:19:22
Ouvir matéria
O “sonho haitiano” no Brasil engloba muito mais do que deixar o país de origem e tentar conseguir emprego. Vai além da questão econômica. Passa por rupturas afetivas com a terra natal e a própria família. É o que viveu o haitiano Reynald Stanis, de 40 anos. Migrou em busca de uma vida melhor, deixando para trás sua esposa Marie Ange Exantus, grávida do quarto filho. “Não o conheço ainda”, conta emocionado em português quase claro, aprendido em um ano e dez meses no Brasil.
Apesar de receber migrantes do Haiti desde o início da década, só agora o Brasil começa a esboçar uma estrutura de acolhimento aos haitianos. Mesmo com o atraso do país, o Paraná ficou um passo à frente, com a criação do conselho de migração.
Histórias como a dele reforçam a condição de vulnerabilidade em que os migrantes chegam ao país e escancaram a necessidade de uma estrutura governamental para recepcioná-los. Afinal, receber os estrangeiros apenas não basta. Para quem vive o dia a dia da migração, é preciso que o poder público mantenha um sistema de garantia de direitos que evite violações – como xenofobia, racismo e trabalho escravo – e que assegure ao estrangeiro a chance de reconstruir sua vida em segurança e com dignidade. É neste ponto que o país falha.
“Antes de convidar o estrangeiro para a sua casa, o governo deveria ter preparado alguma coisa. Não temos que ficar de braços cruzados”, critica o coordenador da Pastoral do Migrante em Curitiba, padre Agler Cherizier.
Das 27 unidades da federação, apenas o Paraná já constituiu um conselho estadual (leia mais nesta página) que pensa e debate mensalmente as questões relacionadas aos migrantes e refugiados no estado. “O estado poderia ter se organizado melhor? Não só o Paraná, mas o próprio Estado brasileiro”, avalia Fátima Ikiko Yokohama, presidente do Comitê Estadual dos Migrantes e Refugiados, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania.
Apesar de o Paraná ter se desenvolvido ao longo do século passado com a força de migrantes europeus, japoneses e, mais recentemente, árabes e chineses, a estrutura paranaense para receber estrangeiros ainda engatinha. Só agora, cinco anos depois da chegada dos primeiros haitianos, o estado abriu uma casa oficial de acolhimento, provisoriamente instalada junto à Vila da Cidadania, em Piraquara, e prepara uma forma de receber os migrantes.
Para a presidente da Associação Para Solidariedade dos Haitianos no Brasil, Laurette Denardin, esta demora escancara o “atraso” do poder público em acolher os migrantes. “Até agora, o Brasil não tem uma política migratória para estrangeiros. O visto é chamado de humanitário, mas não tem uma estrutura humanitária para receber”, diz.
Sem a obrigação de possuir estruturas próprias para receber os estrangeiros, Curitiba não dispõe de qualquer equipamento nesse sentido. Os casos de maior vulnerabilidade são atendidos em unidades para pessoas em situação de rua. Se não fossem entidades como a Casa Latino-Americana , a Caritas, a Pastoral do Migrante e o Recanto Franciscano, os haitianos estariam praticamente à deriva na capital.
O Brasil ainda não ratificou a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre a Proteção de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias. Apesar de o país ser signatário, a carta não tem validade prática. A convenção foi adotada pela ONU em 1990 e chegou à Câmara dez anos depois. A Convenção é um ato internacional fundamental para garantir direitos iguais a todos da mesma forma em vários países. Para isso, é preciso a ratificação do Congresso para colocá-la em prática. Apenas em junho o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), criou uma comissão para debater o tema.
“Os países, em geral, não querem garantir direitos aos migrantes, até por medo de, ao garantir direitos, provocar que os migrantes vejam com bons olhos a alternativa de buscar uma vida melhor no país que assina a convenção”, avalia a procuradora do Ministério Público do Trabalho Cristiane Sbalqueiro Lopes. Segundo ela, um dos maiores benefícios de ratificar a convenção é evitar o retrocesso social, como perda de direitos adquiridos.
O país também não tem uma lei de migração. A legislação vigente é o Estatuto do Estrangeiro, considerado ultrapassado pelos especialistas. Na última semana, a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou o texto do projeto que cria a Lei da Migração. O texto seguiu para análise da Câmara.
Fonte: gazeta